terça-feira, 24 de março de 2015

Carta aberta ao irmão Romero
 
Dom Pedro Casaldáliga
Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia
Adital

"Eu deveria estar aí... e estou de alma inteira. Esta pequena Igreja de São Félix do Araguaia te tem muito presente, irmão. Estás visível em meu quarto, na capela do pátio, em nossa catedral, em muitas comunidades, no Santuário dos Mártires da Caminhada Latino-americana. Até quando cai uma manga sobre o telhado me recordo do sobressalto que sentias quando caiam as mangas sobre teu retiro do Hospitalito.
 
No mês de março de 1983 eu escrevia em meu diário: “Não consigo entender de nenhum modo, ou entendo demais: A fotografia do mártir Monsenhor Romero com João Paulo II, em uns cartazes mais que normais para a visita do Papa, foi proibida pela comissão mista Governo-Igreja de El Salvador. A imagem do mártir dói. Ao Governo, perseguidor e assassino; e é natural que doa a certa Igreja..., também é natural, tristemente natural”.
 
De toda maneira, aqui neste rincão do Mato Grosso, como também muitos cristãos e não cristãos da América e do Mundo, celebraremos outra vez, nesse mês de março, o martírio de São Romero, bom pastor da América Latina. Tua imagem nos conforta, nos compromete e nos une; como uma versão entranhável do Bom Pastor Jesus.
 
E agora estamos aí, milhões, de muitos modos, celebrando o jubileu de teu testemunho definitivo, aquela homilia de sangue que ninguém calará. Tu tens poder de convocação, um poder macroecumênico de santo dos católicos e dos evangélicos e até dos ateus. Estamos aí celebrando, reparando, assumindo. Tu és muito comprometedor; ao Jesus de Nazaré: esse Jesus histórico que tantas vezes se nos desvanece em dogmatizações helenísticas e em espiritualismos sentimentais, o Jesus Pobre solidário com os pobres, o Crucificado com os crucificados da História.
 
Tinhas razão, e isso queremos celebrar também, com júbilo pascoal. Ressuscitaste em teu povo, que não permitirá que o império e as oligarquias continuem submetendo-o, nem se deixará levar pelos revolucionários arrependidos ou pelos eclesiásticos espiritualizados. E ressuscitas nesse Povo de milhões de sonhadores e sonhadoras que cremos que outro Mundo é possível e que é possível outra Igreja. Porque do jeito que a coisa vai, hoje, irmão, nem o Mundo vai e nem a Igreja. As guerras continuam, até as “preventivas”; a fome continua, a greve, a violência –do Estado ou da turba enlouquecida-; continuam as falsas democracias, o falso progresso, os falsos deuses, que dominam com o dinheiro e com a comunicação, com as armas e com a política. E continua havendo muita Igreja muda. Passamos da Segurança Nacional à segurança do capital transnacional e das ditaduras militares à macro ditadura do império neoliberal. São 25 anos também da Conferência de Puebla. Aqueles rostos, Romero, que são o próprio rosto de Jesus “fragmentado”, multiplicaram-se em número e em deformação. Aquelas revoluções utópicas –belas e precipitadas como uma adolescência da História- foram traídas por uns, desprezadas olimpicamente por outros e continuam sendo recordadas com carinho –de outro modo, mais devagar, com mais profundidade pessoal e comunitária- por muitas e muitos dos que estamos aí contigo, pastor do “acompanhamento”, companheiro de pranto e de sangue dos pobres da Terra. Como necessitamos hoje que ensines aos pobres a “tomar corpo” de maneira solidária, organizados, teimosos na esperança!
 
Contigo, dizia o mestre mártir Ellacuría, “Deus passou por El Salvador”, por todo nosso mundo. E o teólogo de fronteira José María Vigil fez sobre ti três rotundas afirmações que, mais do que verdades em que acreditar, são desafios urgentes para ser assumidos:
 
“Romero: símbolo máximo da opção pelos pobres e pela teologia da liberação.
 
Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com o Estado.
 
Romero: símbolo máximo do conflito da opção pelos pobres com a Igreja institucional”
 
Não quer dizer que tu deixaste de ser “Institucional” e comportado. Sempre me admirou em ti a aliança da disciplina com a liberdade, da piedade tradicional com a Teologia da Libertação, da profecia mais arrojada com o perdão mais generoso. Eras um santo fazendo-se, em constante processo de conversão. Sobre ti se tem repetido, de maneira edificante, que eras um bispo convertido. Com Deus e com o Povo, sem dicotomias. “Eu, dizias, tenho que escutar o que diz o Espírito por meio de seu Povo...” Tua homilia do dia 23 de março de 1980, véspera da oblação total, a intitulaste precisamente assim: “A Igreja ao serviço da libertação pessoal, comunitária, transcendente”.
 
Te recordamos tanto porque te necessitamos, Romero, irmão exemplar. Tu animas, tu continuas predicando-nos a homilia da libertação integral. Tu continuas gritando: “Cesse a repressão” a todas as forças repressoras na Sociedade, nas Igrejas, nas Religiões. Tu nos advertes que “aquele que se compromete com os pobres tem que percorrer o mesmo destino dos pobres: ser desaparecidos, ser torturados, ser capturados, aparecer cadáveres”, e nos recordas que, comprometendo-nos com as causas dos pobres não fazemos mais do que “predicar o testemunho subversivo das Bem-Aventuranças, que deram novo sentido a tudo”.
 
Confiavas –e não vamos defraudar-te- que “enquanto haja injustiça haverá cristãos que a denunciem e que se coloquem ao lado de suas vítimas”. Teu sangue, como pedias, é verdadeiramente “semente de liberdade”.
 
Tua memória não é simplesmente nostalgia nem uma veneração sacralizada que fica no ar do incenso; queremos que seja, faremos com que seja, compromisso militante, pastoral de libertação. Nosso teólogo, o teólogo dos mártires, Jon Sobrino, nos resume dessa forma a tarefa evangelizadora e política que, por fidelidade a tua memória, nos demanda hoje o Reino: Enfrentar-se à realidade com a verdade; analisar a realidade e suas causas; trabalhar pela mudança estrutural; levar a cabo uma evangelização madura, libertadora, crítica e autocrítica; construir a Igreja como povo de Deus; dar esperança a esse Povo que tanto sofre...
 
Esta semana de teu jubileu, em San Salvador, acabará sendo um sínodo popular, um encontro de aspirações e compromissos dentro desse processo conciliar que estamos vivendo, uma grande vigília pascoal em torno a ti e a tantas e tantos testemunhos fiéis, conhecidos ou anônimos, porém, todos luminosos no livro da Vida, seguidores até o fim do supremo Testemunho Fiel.
 
“Estamos outra vez em pé de testemunho”, te dizia eu naquele poema. E, de verdade, estamos. Somos do grande Fórum Social Mundial, com o Evangelho e pelo Reino, em direção a um outro Mundo possível, em direção a uma outra Igreja –de Igrejas unidas e libertadoras-, em direção a uma outra Pátria Grande, Nossa América do Caribe e do Sul e da entranhável América Central; com um outro Norte, também irmão, por fim desimperializado.
 
Nos anunciam a V Conferência Episcopal Latino-americana, possivelmente para realizar-se em 2007 e esperamos que seja na América Latina. Ajuda a prepará-la irmão. Façam celestiais horas extras todos os santos e santas de Nossa América para que essa Conferência seja um Medellín, atualizado.
 
Continuaremos falando, irmão Romero. A cada dia. Tu acompanhando-nos desde a Paz total, pelo caminho árduo e libertador do Evangelho. Tantas vezes nos sentimos como os discípulos de Emaús, defraudados, sem rumo, porque “pensávamos que...”
 
Muito se tem falado de tua última homilia como de uma última palavra tua, um testamento; Tu escreveste outra última palavra, mais definitiva ainda, porém menos conhecida. No dia 19 de abril de 1980, Monsenhor Arturo Rivera Damas, administrador apostólico de San Salvador, me escrevia: “… nos permitimos incluir aqui a carta que nosso querido Monseñor Romero deixou redigida no dia de seu assassinato para ser assinada naquela noite. Agradecendo a você sua solidariedade cristã para com ele e com nossa Igreja, pedimos-lhe que possamos contar sempre com suas orações para que possamos continuar a obra que o Senhor e a Igreja agora nos confiam e que, seguindo esses mesmos critérios, Monsenhor Romero realizou...”
 
Tua carta, Romero, que guardamos em nosso arquivo, timbrada como “relíquia”, reza assim:
 
“...Querido irmão no episcopado:
 
Com profundo afeto agradeço-lhe sua fraternal mensagem em solidariedade pela perda de nossa emissora.
 
Sua calorosa adesão alenta consideravelmente a fidelidade a nossa missão de continuar sendo expressão das esperanças e angústias dos pobres, alegres por correr com Jesus os mesmos riscos, por identificar-nos com as causas justas dos despossuídos. À luz da fé, sinta-me estreitamente unido no afeto, na oração e no triunfo da Ressurreição.
 
Oscar A. Romero, Arcebispo”.
 
Tua última palavra escrita, e assinada com sangue, não podia ser mais cristã.
 
Querido São Romero de América, irmão, pastor, testemunho: Tu vivias e davas a vida porque acreditavas de verdade no “triunfo da Ressurreição”. Ajuda-nos a crer de verdade nesse triunfo, para viver e dar vida como tu, com os pobres da Terra, seguindo o Crucificado Ressuscitado Jesus.
 
Pedro Casaldáliga